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"A escuta clínica do paciente com dor e sua importância no cotidiano do médico" é tema de artigo científico de autoria do Dr Durval Kraychete

Confira abaixo o artigo completo.
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Os percursos da dor e do prazer talvez se enlacem todo o tempo, até quando se perdem no tom, na quantidade ou na qualidade, mesmo sabendo que, para uma vida saudável, o ideal seria o prazer. A dor impõe o limite, o corte, sinalizando que nem tudo é possível. Assim tam-bém o papel do adulto monitorando a criança na tentativa de evitar acontecimentos e memórias desagradáveis. De outra maneira, se algum estímulo provocou dor, o corpo entende que aquilo não é bom. Para isso, existe uma memória, um registro de que aquele trauma deve ser identificado prontamente. Quanto maior a intensidade do trauma, maior o registro1.

Alguns autores constataram que animais expostos a estímulos dolorosos repetidos no período neonatal apresentam, na idade adulta, maior ansiedade e comportamento defensivo, associados a aumento da transmissão dolorosa. A circuncisão de recém-nascidos sem anestesia está associada a um aumento de resposta (duração do choro e alterações da mímica facial) à picada durante a vacinação entre quatro e seis meses após a circuncisão quando comparados aos lactentes não circuncisados2. Esses resultados sugerem que, apesar de os registros dolorosos precoces não estarem acessíveis à recordação consciente, podem ser codificados na memóriae levar a padrões de comportamentos anormais e processamento sensorial alterado na vida futura, possivelmente durante toda a vida do indivíduo3-5.

Além disso, outros autores correlacionaram dor crônica difusa no adulto com história anterior de hospi-talização por acidente de trânsito na infância, perda da mãe, moradia em instituições públicas e dificuldades financeiras. Isso foi independente de classe social ou da presença de comorbidade psiquiátrica. O risco, para esses sujeitos, aumentou entre 1, 2 e 5 vezes, evidenciando que o trauma psíquico também é um fator preditivo para as dores físicas6. Dor aguda significa aprendizado para não repetição, para sobrevivência, e tem início e fim relacionado à cicatrização do tecido lesado. Mas, na dor crônica, fenômeno considerado não adaptativo, o que observamos é um excesso de estímulo mobilizando diversos locais do sistema nervoso central e periférico com hiperexcitabilidade neuronal. Talvez quando esses registros mnêmicos se transformem em outra linguagem como a da alodínea (um estímulo não agressivo causando dor) ou a da hiperalgesia (um estímulo agressivo gerando uma intensidade resposta muito maior do que o esperado) se instale o percurso da dor e da cronicidade1.

Desse modo, baseado na ideia de que todo estímulo traumático causa um registro mnêmico, nossas primeiras experiências traumáticas, relacionadas a perdas, a separação, a frustração e a agressão física po-dem ser a base para um emaranhado complexo de neurônios mostrar as inter-relações de causa e efeito. Para toda dor, então, existe um com-ponente fisiológico e emocional de excitação neuronal ou de excesso de carga. A dor fica marcada no inconsciente e pode ser transfigurada em outro afeto7. É comum a alta prevalência de transtornos psiquiátricos, como ansiedade ou depressão, em pacientes com dor crônica8. Pode-se teorizar, de forma simplista, que o corpo emocional se apresenta com sintomas positivos (de excesso) ou negativos (de falta). A ansiedade (sintoma positivo) com o medo do porvir, e a depressão (sintoma negativo) com a expressão da angústia e da incapacidade de lidar com certas questões. De outra forma, o neurônio, no curso da neuropatia periférica, por exemplo, pode apresentar sinais sensitivos negativos (analgesia) ou positivos (alodínea, hiperalgesia) ou, de maneira assustadora, no percurso da dor crônica, escolher, do ponto de vista comportamental, a própria morte. Pois, como direcionar excesso de excitabilidade se não planejando o próprio fim (apoptose celular)? Existem relatos de que pacientes com fibromialgia, dor lombar crônica e cefaleia tipo tensão perdem neurônios corticais9: – seria uma defesa do corpo? Seria melhor perder a capacidade cognitiva e avaliativa? Seria necessário padecer na imobilidade melancólica? Seria um contraponto ao principio do prazer? Seria esse o lugar do saber impossível?

Assim, se está diante de uma história recheada de mistérios, conexões e expressões de sintomas distintos da realidade que os provocou, de representação mental (simbólica) e de recalques no inconsciente, tão presente nos contos de Rodrigues10. Imagine um paciente típico do sé-culo XXI, implantando, agora, os dentes e desenvolvendo dor crônica após trauma (neuralgia pós-traumática), lembrando que o diagnóstico é clínico e não há exames complementares que identifiquem essa doença. Essa é uma emoção dolorosa típica; trata-se da formação de uma outra imagem, não somente vinculada às circunstâncias da cirurgia. Seus dentes, tão desejados e imortais, agora seriam objeto de sofrimento. E as suas possíveis dores antigas podem reaparecer de outra forma, em outro lugar e em outro afeto7.

Está aí o grande desafio para o médico clínico: lidar com o que escapa às nomeações, com aquilo que sai da esfera da lesão nervosa e de sua representação simbólica. Talvez haja um excesso de investimento afetivo na imagem do local lesado do corpo (boca) ou na imagem do objeto perdido (dentes). Assim, haverá uma interseção entre a dor corporal (da lesão de nervo) e a dor psíquica.

Desse modo, podemos dizer que a representação corporal simbólica da boca se integra a uma fantasia já construída dos desejos e registros inconscientes que nunca corresponderá à realidade7. Talvez por isso a dor não tenha métrica clara e apresente um caráter descritivo sempre muito subjetivo. O fato é que, pensar inicialmente em neurobiologia da dor, neurônios, neurotransmissores, receptores e sinapses, também significa entender que pessoas são conectadas por sua própria história e relações sociais. Falemos, então, da alodínea e da hiperalgesia da alma, das impressões icas em significantes, de pequenos estímulos que nos arrebatam em pânico ou isolamento, ou da convicção absoluta de uma dor irreparável.

É comum receber pacientes com dores musculoesqueléticas ou doenças autoimunes após perdas de entes queridos, separações ou perda de posição social. Outra maneira de persistir na dor é a opção de destituir do médico a sua capacitação, posição e imagem, criando um discurso ofensivo, baseado em pesquisas sobre a doença na internet ou consultas prévias. Não escutam as orientações de maneira adequada e fantasiam que os procedimentos ou fármacos pioraram o curso da dor, quando de fato não há evidência para isso. Essa estrutura reflete a natureza auto-organizacional do desenvolvimento psicomotor produzido pela interação entre eventos neurobiológicos, conexões sensitivo-motoras, neurovegetativas, imunes e de cargas que não estão sob o controle do sujeito. O corpo doído se apresenta ao médico desse jeito, cheio de mistérios intermináveis.

Dessa forma, cabe ao médico resistir ao processo de adoecer o indivíduo, baseado em seu comportamento, ou fiscalizar, ou negligenciar o sujeito por conta de seus desvios, e sim, procurar prover um ambiente de cuidado e segurança independente da moral11. Conduzir o paciente à psicoterapia também é uma tarefa que requer habilidade. A discussão em torno de adesão ao tratamento em clínica de dor para que paciente com dor crônica deixe de circular tanto à procura de solução para sua dor, evitando iatrogenias e conceitos inadequados, vem suscitando discussões complexas e multiprofissionais. Além da possibilidade de fármacos ou de intervenções, é necessário enfatizar que o equilíbrio psíquico do corpo se rompeu.

Na dor crônica, pode haver aumento da concentração de dopamina no espaço extracelular do sistema nervoso central (córtex orbitofrontal, núcleo acumbens, amígdala e palidum ventral), com redução do efeito dessa substância em receptores específicos, assim como perda na liberação imediata (de pico), extre-mamente necessária para as tarefas relacionadas à recompensa12. Há, também, eficácia reduzida do sistema opioide na medula espinhal, com diminuição de β-endorfinas no encéfalo e na medula espinal e consequente redução do efeito analgésico da morfina, tanto por via sistêmica como por via espinhal13.

O que se pode inferir é que o trabalho do aparelho mental se dirige no sentido de manter baixa a quantidade de excitação, então, qualquer coisa que seja calculada para aumentar esse padrão está destinada a ser sentida como adversa ao funcionamento correto. O interessante é que qualquer instinto reprimido ou substituído, ou o esforço de obter prazer, pode se transformar em experiência desagradável, principalmente se atravessado pelo princípio da realidade. Observa-se que a tolerância à repetição do desagradável sustenta-se na esperança de uma redução progressiva do desprazeroso14,15. Concluo esse relato afirmando o quanto é necessário desvendar os inúmeros paradigmas teóricos que envolvem o paciente com dor crônica, deixando claro que o mais importante, em qualquer escuta clínica, é o sujeito.

Durval Campos Kraychete
Editor Científico
Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil.




REFERÊNCIAS

1. Rocha AP, Kraychete DC, Lemonica L, de Carvalho LR, de Barros GA, Garcia JB, et al. Pain: current aspects on peripheral and central sensitization. Rev Bras Anestesiol. 2007;57(1):94-105. English, Portuguese.
2. Taddio A, Katz J, Ilersich AL, Koren G. Effect of neonatal circumcision on pain response during subsequent routine vaccination. Lancet. 1997;349(9052):599-603.
3. Grunau RE, Holsti L, Peters JW. Long-term consequences of pain in human neonates. Semin Fetal Neonatal Med. 2006;11(4):268-75.
4. Woolf CJ, Salter MW. Neuronal plasticity: increasing the gain in pain. Science. 2000;288(5472):1765-9.
5. Gonçalves N, Rebelo S, Tavares I. [Fetal pain - neurobiological causes and consequences]. Acta Med Port. 2010;23(3):419-26. Portuguese.
6. Jones GT, Power C, Macfarlane GJ. Adverse events in childhood and chronic widespread pain in adult life: Results from the 1958 British Birth Cohort Study. Pain. 2009;143(1-2):92-6.
7. Nasio JD. A dor corporal: uma concepção psicanalítica. In: Zahar J. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1997. 67-110p.
8. Castro M, Kraychete D, Daltro C, Lopes J, Menezes R, Oliveira I. Comorbid anxiety and depression disorders in patients with chronic pain. Arq Neuropsiquiatr. 2009;67(4):982-5.
9. Valet M, Gündel H, Sprenger T, Sorg C, Mühlau M, Zimmer C, et al. Patients with pain disorder show gray-matter loss in pain-processing structures: a voxel-based morphometric study. Psychosom Med. 2009;71(1):49-56.
10. Rodrigues N. Boca de Ouro – Tragédia carioca em três atos. In: Teatro quase completo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1966.
11. Chambers RA, Bickel WK, Potenza MN. A scale-free systems theory of motivation and addiction. Neurosci Biobehav Rev, 2007;31(7):1017-45.
12. Leknes S, Tracey I. A common neurobiology for pain and pleasure. Nat Rev Neurosci. 2008;9(4):314-20.
13. Kraychete DC, Gozzani JL, Kraychete AC. Neuropathic pain--neurochemical aspects. Rev Bras Anestesiol. 2008;58(5):498-505. English, Portuguese.
14. Freud S. Além do Principio do Prazer. In: Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago; 1996 (Edição Standard Brasileira).
15. Magnini LQ. Princípio do prazer: reflexões teóricas e clínicas. Pulsional Revista de Psicanálise. ano XIII;132:45-51.




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